O Brasil dá mais um passo em direção à construção da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) com a elaboração do Plano Nacional de SAN, conforme previsto no decreto que regulamenta a Lei Orgânica de SAN (Losan), Lei nº 11.346, de 2006.

O plano define metas, recursos e programas de 20 ministérios para garantir o direito humano à alimentação adequada e a segurança alimentar e nutricional de toda a população do País. Foi construído de forma intersetorial, sob a coordenação da Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan), composta por 19 ministérios, dos quais 14 participaram ativamente de sua elaboração, e participativa, com contribuições do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Com isso, o governo e a sociedade têm um instrumento público e transparente para ser monitorado e avaliado no cumprimento dos objetivos elencados.

É sempre bom lembrar que a Segurança Alimentar e Nutricional, com a abrangência adquirida no Brasil, ainda é um conceito relativamente novo, em fase de incorporação pela sociedade e pelos governos, mas muito se avançou desde o início da discussão do tema no País.

Nesse sentido, cabe perguntar: quais os grandes desafios a serem debatidos na 4ª Conferência Nacional, em novembro, em Salvador, Bahia? Qual a complementaridade entre as agendas de Segurança Alimentar e Nutricional e do Plano Brasil Sem Miséria, lançado pelo Governo Federal?

Avanços

A segurança alimentar esteve historicamente relacionada com a disponibilidade de alimentos, desde o período das guerras mundiais, tratada como preocupação de Estado e estratégica para garantir a paz no mundo. Também no Brasil seu uso esteve mais relacionado à produção de alimentos e ao uso da terra. Porém, desde a década de 1990, uma construção envolvendo grande número de atores sociais colocou em primeiro plano o problema da falta de acesso a alimentos por boa parte da população.

Em sintonia com o debate mundial, entendeu-se que a falta de acesso não se devia à insuficiência de alimentos, mas à falta de renda e de condições para adquiri-los, fortemente ligada à pobreza – e a toda sorte de violações que afetam os indivíduos e grupos empobrecidos – e à desigualdade do acesso aos meios de produção, como a terra.

Essa construção confluiu para a formulação do Projeto Fome Zero, do Instituto Cidadania, base da introdução da Segurança Alimentar e Nutricional na agenda brasileira enquanto política pública. Foi recriado o Consea, aprovou-se a Losan, em 2006, e introduziu-se a alimentação como direito social na Constituição Brasileira (2010). Implementaram-se programas organizados em uma ampla política intersetorial, formulada e dirigida por 19 ministérios que fazem parte da Caisan. Seus membros compõem a parte governamental do Consea, ligado à Presidência da República por seu caráter estratégico. Muitos avanços foram registrados desde então na redução da fome e da desnutrição, notadamente com programas massivos de transferência de renda. No entanto, a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar registrou, em 2010, que 30,2% dos domicílios ainda sofriam de algum tipo de insegurança alimentar – em 2004, eram 34,9%.

Quanto aos programas implantados, grande marco foi a articulação da produção da agricultura familiar com programas alimentares, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), a distribuição de alimentos a grupos populacionais específicos e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae).

Desafios

Os grandes desafios envolvem a institucionalidade e a gestão do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), responsável pela implantação da política de Segurança Alimentar e Nutricional. O primeiro é fortalecer a noção do direito humano à alimentação adequada como direito da sociedade e dever do Estado, em seus três níveis de governo. Trata-se de incorporar a abordagem de direito aos programas e ações públicas, o que implica reforçar a obrigação dos agentes públicos e contribuir com o empoderamento dos sujeitos de direitos, garantindo formas com que possam exigir seus direitos, de maneira efetiva, em caso de lesão ou ameaça às suas prerrogativas fundamentais. A despeito de todos os avanços, é grande o desafio dos anos que vêm pela frente, para consolidar as formas de proteção, respeito, provimento e exigibilidade desse direito.

Um segundo grande desafio é a promoção da alimentação adequada e saudável, que, não à toa, é o lema da 4ª Conferência. A qualidade da alimentação que chega à mesa do brasileiro está piorando, como mostram os dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do IBGE – e pior, com alta incidência negativa sobre as crianças.

Quanto mais a sociedade se desenvolve, mais o alimento consumido se distancia da alimentação natural produzida na localidade e preparada em casa pela própria família. Mais brasileiros se alimentam fora de casa, desconhecem de onde vêm os alimentos que chegam à sua mesa e consomem produtos cada vez mais industrializados e conservados (como os congelados e de pronto consumo).

As famílias mais pobres, que têm sua renda melhorada, buscam reproduzir cada vez mais o padrão de consumo dominante e suas crianças passam a ser alvo da indústria alimentícia. O risco do sobrepeso e da obesidade aumenta em todas as classes sociais. Para evitar isso, o Estado precisa criar um amplo programa de educação alimentar que fomente e incentive hábitos alimentares mais saudáveis, em especial junto às crianças e famílias beneficiárias de programas sociais. É preciso fortalecer os instrumentos de regulação: da propaganda, da indústria e da produção alimentar, sem os quais dificilmente se enfrenta o problema crônico da má alimentação.

Se o desafio do Fome Zero era garantir ao menos três refeições ao dia, o grande desafio da segurança alimentar hoje é o acesso à alimentação adequada e saudável, de forma permanente e sustentável. E isso está presente claramente no Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.

Um terceiro grande desafio é a retomada de uma política soberana de abastecimento alimentar que consiga fazer com que o alimento, em especial o alimento fresco, chegue à mesa do consumidor com menor distância do lugar onde é produzido, menor custo, mais qualidade e diversidade, e que consiga incidir sobre as flutuações dos preços e proteger a renda da população mais pobre. É importante trazer de volta esse tema, que está na origem do conceito da segurança alimentar, desenhando instrumentos, estruturas e formas de gestão em sintonia com os objetivos da Segurança Alimentar e Nutricional.

Construção

A grande oportunidade desta 4ª Conferência está na possibilidade de avançar na institucionalidade e gestão da Política de Segurança Alimentar e Nutricional. Os grandes princípios dela são a intersetorialidade e a participação social, que precisam avançar em direção aos estados e municípios. Há que tornar estados e municípios atores relevantes na formulação e gestão de políticas, e não deixá-los como subsidiários junto à política nacional. Para tanto, deve-se estimular o foco do local para o nacional e global, além do olhar convencional do nacional para o local.

Constituir o Sisan a partir da adesão de estados e municípios significa, além de considerar a diversidade nacional, trazer a leitura do território para a construção e o monitoramento da política, construir espaços institucionalizados de diálogo e de pactuação permanentes entre as três esferas de governo. Nesse sentido, estão sendo previstos fóruns bipartites e tripartites.

Brasil Sem Miséria

O Governo Federal anunciou recentemente ações visando à erradicação da extrema pobreza no Brasil. A meta estabelecida pela presidenta Dilma Rousseff reenergiza as dinâmicas sociais e políticas induzidas pelo Fome Zero e por outras iniciativas no campo social, ampliando o desafio agora para eliminar as marcas mais detestáveis de nossa profunda desigualdade social.

Várias políticas públicas reconstruídas no governo Lula estão em fase de consolidação no governo Dilma: as de apoio à agricultura familiar, territoriais, de agroecologia, de economia solidária, de assistência social e de juventude são exemplos que envolvem um conjunto de arranjos institucionais participativos de formulação e gestão.

Os alimentos devem continuar a receber atenção prioritária. Entre as várias dimensões e formas de manifestação da pobreza, as condições de acesso à alimentação estão entre os parâmetros principais para definir as condições em que vivem aqueles em extrema pobreza. Portanto, as ações anunciadas devem se beneficiar da legitimidade social e da experiência de integração de políticas públicas já alcançadas, no Brasil, pela promoção da soberania e da segurança alimentar e nutricional e do direito à alimentação adequada e saudável. Assim, o Plano Brasil Sem Miséria constitui grande oportunidade para integrar (e não substituir) as políticas que chegam aos mais pobres, com um foco bastante definido, metas, tempo de duração – quatro anos – e um público claro: a população em extrema pobreza. A Política de Segurança Alimentar e Nutricional tem abrangência maior, pois se refere ao conjunto da sociedade, e componentes estratégicos com horizonte de tempo mais amplo. Contudo, em termos de público, certamente há forte intercessão entre aqueles que estão em situação de extrema pobreza e em insegurança alimentar grave.

Portanto, as políticas voltadas para garantir o acesso aos alimentos beneficiam o mesmo público do Plano Brasil Sem Miséria.

O Plano Brasil Sem Miséria se volta para 16,2 milhões de pessoas extremamente pobres, desprovidas de direitos básicos, com várias necessidades e capacidades a serem fortalecidas, gerando diferentes rotas de inclusão social e produtiva. O desafio está em aperfeiçoar as diversas políticas, construídas na última década,voltadas para os grupos populacionais mais vulneráveis, a agricultura familiar e o desenvolvimento rural, para que consigam alcançar as famílias mais excluídas e dar novo salto rumo à inclusão produtiva.
Englobam ações e políticas públicas nacionais, estaduais, municipais ou de iniciativa das organizações da sociedade civil.

Além disso, programas de Segurança Alimentar e Nutricional que visam garantir acesso universal a serviços e direitos essenciais, como água para consumo humano, tornaram-se estratégicos para o Plano Brasil Sem Miséria. Isto porque quem não tem acesso à água para consumir, e cujas mães e crianças gastam horas para buscar, nas costas, uma lata de água de má qualidade em barreiros, certamente é considerado miserável.

Programas de inclusão produtiva que chegam às famílias mais pobres no campo, como o Programa de Aquisição de Alimentos - PAA, também têm papel estratégico no plano e serão reforçados, tendo em vista a ampliação da compra da produção dos agricultores familiares extremamente pobres.
Adicionalmente, qualificar melhor essa produção para ofertar aos mercados institucionais e privados é outro desafio previsto pelo Plano Brasil Sem Miséria. A produção de agricultores familiares, comunidades indígenas e povos e comunidades tradicionais será fortalecida visando tanto ao autoconsumo quanto a melhor qualificação para o mercado, por meio de assistência técnica qualificada e da garantia de água para a produção.

Temas fomentados corretamente por setores da sociedade civil e da academia, como os da regularização fundiária e da reforma agrária – considerando que parte expressiva de famílias no campo têm pouco ou nenhum acesso à terra – e a qualidade do trabalho rural – considerando que outra parte tem condições precarizadas de trabalho – estão na agenda do dia e incorporados no Plano Brasil Sem Miséria. Estas implicam em duas rotas de inclusão produtiva: uma, por meio da regularização fundiária e de assentamentos rurais associados a assistência técnica, recursos para estruturação produtiva e abertura de mercados institucionais. Outra, a construção de pactos para melhoria das condições de assalariamento e de geração de emprego e ampliação da qualificação e capacitação profissional, em especial para jovens e mulheres do campo.

A expectativa é que os debates e deliberações da 4ª Conferência, com a participação de 2 mil delegados, de todas as partes do Brasil, sejam mais um passo para o fortalecimento da Política e do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, para a institucionalização do Sisan nos estados e municípios e para a erradicação da extrema pobreza no nosso País. Não é tarefa apenas dos governos e nem se limita a soluções tecnocráticas, requerendo efetivo e qualificado envolvimento da sociedade civil nas próprias políticas públicas e em iniciativas sob sua responsabilidade. Os espaços de participação das conferências e dos conselhos são decisivos para tanto.

* Maya é secretária nacional de Segurança Alimentar e Nutricional do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
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 Renato é presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional