Imprensa - ASA na Mídia

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23.03.2015
A água e a experiência do Semiárido
Site - Fiocruz


Por Anna Carolina Düppre - repórter

Algumas cidades do Brasil, notadamente São Paulo, passam por uma grave crise hídrica que tem recebido bastante destaque da imprensa e tem preocupado diversos setores da sociedade, afinal a água é um elemento essencial para a vida humana e planetária. Por se tratar de um assunto amplo, que permite vários desdobramentos, e em homenagem ao Dia Mundial da Água, celebrado em 22 de março*, o site da Olimpíada Brasileira de Saúde e Meio Ambiente/Fiocruz traz na semana de 16 a 21 de março, uma série de reportagens e entrevistas exclusivas com especialistas abordando a água como tema principal. Esperamos que gostem!

O elemento água é essencial para o cultivo e produção de alimentos. Com ela é possível regar as plantações, dar de beber aos animais, higienizar e preparar os alimentos que irão à mesa. Justamente por ser um componente indissociável da produção e mesmo do consumo, não pode ser usada indiscriminadamente sem que se pense nos custos que isso gerará à cadeia de consumo e à manutenção da vida. Como bem resumiu o teólogo Naidison Baptista, integrante do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea) e da coordenação geral da Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA), “a produção de alimentos não funciona sem a água”.

O Brasil é tecnicamente um país abastado em relação à disponibilidade de recursos hídricos, pois com cerca de 3% da população mundial, detém aproximadamente 12% da água potável da superfície do planeta. No entanto, o Consea classifica como “bastante desigual” a distribuição do recurso e ilustra sua postura com o exemplo da região hidrográfica onde está a maior parte do semiárido: lá, a vazão de água per capita é 1.145 m³ ao ano, nível bem abaixo do recomendado pela Organização das Nações Unidas (ONU) de 1.700 m³ ao ano. A ONU reconheceu em 2010 o direito à água potável e ao saneamento como direito humano.

A região do semiárido brasileiro, que compreende os estados de Alagoas, Bahia, Ceará, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe, passa por tensões sobre disponibilidade da água que vão desde a concentração do recurso até a má distribuição para a população. O acesso vem sendo democratizado através de políticas públicas e redes de gestão e desenvolvimento, mas projetos como a transposição do rio São Francisco são iniciativas que tendem a ir no caminho da concentração, avalia o teólogo.

A seguir Naidison Baptista fala exclusivamente ao site da Olimpíada Brasileira de Saúde e Meio Ambiente:

OBSMA: Nesses tempos de crise hídrica, o que a população do semiárido tem a ensinar ao resto do país sobre a maneira de lidar com a água e sua escassez?

Naidison Baptista: Antes de tudo é importante ter em mente que as soluções não são totalmente generalizáveis e aplicáveis em todos os espaços e contextos. Elas devem ser adequadas a cada realidade, considerando-se também, as lições que podem ser aprendidas de todas as experiências. Assim sendo, o povo do semiárido poderia dizer algumas coisas ao Brasil em termos do uso e trato com a água:

1. A água é para todas as pessoas e não apenas para algumas. Isso significa que devemos cuidar dela, conservá-la e utilizá-la tendo como referência que não apenas eu e os meus temos o direito à água, mas todas as pessoas de minha cidade e do mundo. Assim, não podemos nos permitir o uso depredador desse recurso;

2. A água é essencial para nós humanos e para a natureza, sendo ao mesmo tempo finita. Se a desperdiçamos, se a envenenamos com agrotóxicos e resíduos os mais variados, se destruímos suas nascentes e matas ciliares, a água vai nos faltar.

3. Se quando chove deixamos que toda a água seja desperdiçada, perdemos enormes oportunidades de armazená-la para utilização posterior. O semiárido tinha esta prática: quando chovia, desperdiçava-se toda a água, porque não havia meios adequados de armazenamento. Hoje, com mais de um milhão de cisternas de consumo humano, modificou-se radicalmente esta realidade e a vida das pessoas melhorou substancialmente pelo acesso à água. Quem sabe se no futuro, São Paulo e outras cidades não possam pensar numa política de captação de água da chuva em residências, edifícios e outros locais, evitando o desperdício de milhões de litros de água hoje não utilizados? Outros povos já faziam e fazem isso.

4. Cuidar da água e preservar seus mananciais é questão de cultura. Essas são práticas que as pessoas e os grupos sociais vão desenvolvendo ao longo do tempo. É urgente iniciar este debate nas escolas, em espaços variados da comunidade para que possamos ir criando mecanismos e processos de boa gestão da água.

OBSMA: Como a falta d'água pode afetar a produção de alimentos e a cadeia alimentar?

Naidison Baptista: É evidente que a água é um elemento essencial no processo de alimentação e de produção de alimentos. Poderíamos refletir sobre isso a partir de elementos bem básicos: O ser humano não vive sem água. Ela integra e faz parte essencial de sua alimentação; a higienização, essencial à saúde e à segurança alimentar, não se realiza sem a água. As plantas e os animais morrem sem a presença de água e com isso, acabam-se todos os processos de produção de alimentos. A essencialidade desse elemento, no entanto, não justifica a utilização indiscriminada nas irrigações predatórias e outros usos que desperdicem e contaminem a água.

OBSMA: Como tem sido a convivência do semiárido com os recursos hídricos? Você acha que a situação está sendo controlada ou as coisas ficaram mais difíceis?

Naidison Baptista: A ampliação do acesso ao direito à agua é um dos elementos que mais cresceram no semiárido nos últimos 12 anos. O Programa de Cisternas, proposto pela ASA e realizado pelo Governo Federal em parceria com Governos Estaduais e Organizações da Sociedade Civil oportunizam que mais de um milhão de famílias do semiárido tenham garantido o seu direito à agua para consumo humano. Simultaneamente mais de 110 mil famílias já possuem acesso à agua para produção e há boas iniciativas de levar água para as escolas no semiárido. Contudo, ainda há muita concentração de água nas mãos de poucos e obras como a Transposição do São Francisco, nada mais são que a concentração de água a serviço de poucos.

OBSMA: Como você vê a situação do semiárido atualmente em relação à segurança alimentar?

Naidison Baptista: As seguranças alimentar e nutricional compreendem a realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade em quantidade suficiente, sem comprometer outras necessidades essenciais, tendo como base as práticas alimentares promotoras da saúde, que respeitem a diversidade cultural e sejam ambiental e culturalmente sustentáveis (artigo 3º da Lei de Segurança Alimentar).

Olhando a definição acima e a realidade a região, pode-se constatar com objetividade e clareza que o semiárido está longe de ter uma situação que lhe garanta segurança alimentar e nutricional. Essa região ainda possui a terra concentrada em poucas mãos, as comunidades tradicionais têm seus territórios negados, a assistência técnica embora crescente ainda esta desadequada à realidade do semiárido, assim como o crédito. Embora haja acontecido uma enorme democratização do acesso à agua na região, ela ainda está muito concentrada e isso não favorece a segurança alimentar. Há ainda outras questões como educação descontextualizada e processos de saúde que não atingem a todos. No entanto, há politicas que foram e estão sendo implementadas que vêm modificando para melhor a segurança alimentar na região. Vamos elencar algumas delas e suas repercussões:

a) Democratização do acesso à agua: O Governo Federal ao assumir a proposta de cisternas da ASA e do CONSEA Nacional – Articulação Semiárido Brasileiro – e buscar sua implementação, criou oportunidade de democratizar o acesso à agua por mais de quatro milhões de pessoas a este serviço; a implementação de tecnologias sociais de captação de água para produção, abriram também perspectivas de que os/as agricultores/as pudessem produzir e consumir alimentos saudáveis;

b) Maior convivência com o semiárido: A insegurança alimentar na região tem suas bases estruturais na política de combate à seca que foi implementada durante séculos e que ainda tem suas raízes no semiárido. As ações de combate à seca atuavam de forma assistencialista, deixando as pessoas e instituições numa postura de dependência, desvalorizadas, olhadas como objetos de benevolência extrema, consideradas como incapazes de assumir seus próprios destinos. Em contrapartida, a política de convivência com o semiárido o assume como viável e enxerga seus habitantes como pessoas inteligentes e produtoras de. Esta política resgata, amplia e qualifica práticas pelas quais a vida das pessoas se torna viável no semiárido e, consequentemente, a segurança alimentar também;

c) Há possibilidade de se produzir mais e melhor no semiárido;

d) Iniciam-se processos de identificação de sementes crioulas, numa dimensão de construção de 600 bancos de sementes, através dos quais os/as agricultores/as tenham garantia de obtenção de sementes para plantar, livres de transgênicos e de agrotóxicos, com autonomia das comunidades;

e) Há programas sociais que garantem o mínimo necessário para que as pessoas se alimentem bem.

Sinteticamente, a construção da segurança alimentar no semiárido é um processo dialético. Há um histórico forte de séculos de construção da fome e miséria no semiárido e a partir daí ter e assegurar a subserviência do seu povo. Mas há uma estrada no sentido inverso, de democratizar a terra, a água, as oportunidades, o saber, o acesso aos serviços e direitos.

Todas as matérias do Especial Água Obsma 2015 podem ser acessadas em: http://www.olimpiada.fiocruz.br/especial-agua-2015

Ariane Mondo - Jornalista coordenadora do especial Água/Obsma 2015

Edição: Ariane Mondo

Arte especial Água/Obsma 2015: Luis Claudio Calvert

Foto de Naidison Baptista: Vlademir Alexandre/ASA

Foto homem e seca: Leopoldo Conrado Nunes/creative commons

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